Fabiana Lustosa Gaspar é psicóloga e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Atualmente, é Coordenadora Psicossocial da Organização Não Governamental Viva Rio. É autora do livro Anorexia e Violência Psíquica, da Editora Juruá.
Nos últimos tempos, o crack tem sido muito discutido e apontado como o grande mal-estar da civilização atual. Inúmeras matérias têm vinculado a dependência ao crack a uma epidemia sem controle no país, considerando-a como um fato consumado e legítimo.
Apesar destas “certezas” instaladas, vale ressaltar que uma das dificuldades centrais do Brasil é a realização de estudos atualizados e de escala nacional sobre esta problemática. O que tem sido visto são diversos trabalhos de caráter não representativo do país como um todo, abusivamente utilizados e denominados como tais, o que gera uma série de distorções e falhas de estimativa e interpretação.
Para agravar ainda mais este quadro, constata-se a escassa e bastante defasada experiência de pesquisa com populações em situações de rua, e as últimas publicadas nesse sentido são em locais anteriores à emergência do crack.
Sob este panorama, é importante o cuidado do trato sobre esta problemática bem como investigações neste sentido. Vale aqui destacar a pesquisa em curso na Fiocruz em parceria com a SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas)1 que busca traçar o perfil do usuário de crack no Brasil. Esta lança mão de métodos mais novos – como geoprocessamento e utilização de amostras complexas – que, provavelmente, redefinirão o entendimento e a abordagem dessa questão nos próximos anos.
É claro que a falta de dados consistentes e atuais sobre o enfretamento do uso e da dependência do crack não significa que deva ser desconsiderado. Porém, cabe salientar que estas conclusões gerais e radicalizadas tendem a provocar intervenções extremas e imediatas sem que haja espaço para uma reflexão adequada sobre este complexo problema.
Nos dias atuais, observa-se a implementação de diversos procedimentos descolados das diretrizes básicas de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, que têm sido construídas e, indiscutivelmente progredido, a partir dos trabalhos teórico-práticos desenvolvidos ao longo dos anos.
Destaca-se, por exemplo, a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas criada em 2004. Este documento contempla, a perspectiva da atenção integral e a produção de autonomia do sujeito, criando práticas comprometidas com a promoção, prevenção e o tratamento dos agravos relacionados ao uso de drogas e à dependência química.
Sob este ponto de vista, a reabilitação psicossocial e a reinserção do usuário apostam na potencialidade do território comunitário, valorizando-o no processo de saúde-doença em relação ao consumo de substâncias. Assim, tornou-se imperativo o incremento de ações extra-hospitalares, investindo nos conceitos de território e de rede para tecer o cuidado integral. A comunidade e o meio cultural passaram então a ser elementos fundamentais para este novo modo de conceber saúde mental.
Esta modalidade de cuidado vem de encontro ao que predomina no imaginário social. Este último tende a mitificar a internação, considerando-a como a única medida resolutiva no que tange aos usuários drogas. Desta maneira, a hospitalização é utilizada de forma indiscriminada sem que haja uma avaliação adequada do caso.
Diferentemente do que predomina no imaginário social – que o isolamento através da internação é o melhor modo de cuidado do dependente químico –, é o fortalecimento das relações dos recursos locais com o sujeito que possibilitam mudanças.
Alguns municípios do Brasil, por exemplo, adotaram a compra de leitos em hospitais privados como estratégia de cuidado, buscando ofertar o número suficiente de internações aos dependentes de drogas. Tal prática, além de extremamente custosa ao SUS, não discute a real necessidade do paciente.
Nos atendimentos dos usuários de drogas, percebe-se claramente que seu pedido – e dos familiares – via de regra é pelo internamento, muitas vezes por desconhecerem outras possibilidades de tratamento. Esta modalidade de tratamento, como na abordagem de outras patologias da saúde, precisa ser compreendida como recurso último, exigindo a elevada complexidade do nível hospitalar. A internação deve acontecer em situações graves e seguir em acompanhamento após a alta, sob pena de novas e sucessivas internações.
Sob esta perspectiva, mesmo para os casos mais graves, primeiramente, devem ser oferecidos serviços que proporcionem os cuidados intensivos necessários e, ao mesmo tempo, mantenham os vínculos familiares e sociais, diferentemente do internamento.
Destaca-se como interessante alternativa ao modelo asilar e de confinamento, os Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas (CAPS-AD). A modalidade de atendimento é multiprofissional, sendo o projeto terapêutico singular para cada pessoa, contemplando suas necessidades e desejos. Nesses espaços, o tratamento psicoterápico em conjunto ao medicamentoso, quando necessário; os atendimentos às famílias; os trabalhos de geração de renda e as oficinas terapêuticas são desenvolvidos. É importante esclarecer que este serviço está sempre pronto para acolher o usuário, não exigindo a sua abstinência como pré-requisito à inserção no tratamento. Além disso, outro aspecto fundamental no atendimento aos usuários de drogas, é o trabalho de reabilitação visando à reinserção social e familiar do cidadão.
Considerando que a internação não deva ser considerada como primeiro recurso no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas, a internação compulsória tampouco. Verifica-se que o número de recaídas nestes casos gira em torno 96 a 97% . Em outras palavras, torna-se praticamente ineficaz.
Diante desta ineficácia, entende-se que esta serve apenas, como meio de impedir um perigo imediato do paciente para a sua própria segurança ou de outras pessoas, num curto prazo de tempo. Vale esclarecer que o Ministério Público Estadual é a instância que deve acompanhar e regular este procedimento.
Neste sentido, quando se vincula diretamente o cuidado das crianças e adolescentes usuários de crack à internação compulsória, traz-se grande preocupação. Não só por sua ineficácia e pelo seu alto custo comparado a outras modalidades de intervenção, mas também por não apresentar um plano terapêutico que considere a grande complexidade a que este público está inserido.
Ao se falar em crianças e adolescentes usuárias de crack, não pode esquecer-se da situação de rua em que se encontram. Muitas destas, diferentemente do que predomina no imaginário social, não estão nas ruas em decorrência das drogas, mas sim o estão em virtude de um processo violento de exclusão social e familiar. Em outras palavras, o uso abusivo de drogas consiste em um sintoma decorrente de uma emaranhada e sofrida situação.
Para se conseguir, então, resultados mais positivos e consistentes no que tange às crianças e adolescentes moradoras de rua e usuárias de crack é essencial o trabalho de resgate da cidadania. Isto quer dizer que, para que o trabalho aconteça, é necessário que estes sejam reconhecidos enquanto sujeitos e, mais ainda, enquanto sujeitos de direitos.
Sob esta perspectiva, o acolhimento e a formação do vínculo são os pontos a serem perseguidos na primeira etapa de trabalho. Com estes estabelecidos, devem ser fortalecidas e desenvolvidas ações que busquem a prevenção, a promoção e os cuidados em saúde, que vão para muito além do uso da droga. É claro que estas devem estar aliadas ao trabalho intersetorial – em parceria com os setores da educação e da assistência social, por exemplo – para que se promova um real redirecionamento das trajetórias de vida destas crianças e adolescentes, considerando as suas singularidades.
Em outras palavras, deve-se ter sempre em mente que, quando trabalha com crianças e adolescentes moradoras de rua e usuárias de crack, a busca pela reinserção familiar e social é imprescindível para este processo de cuidado aconteça.
1 Projeto de Pesquisa “Perfil dos usuários de crack nas 26 capitais, DF, 9 regiões metropolitanas e Brasil”, junho de 2010. Coordenado por Francisco Inácio Bastos (FIOCRUZ) e Flavio Pechansky (UFRGS);2 Entrevista com Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, no Jornal da CBN, em 01 de agosto de 2011.
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