sexta-feira, 13 de julho de 2012

ECA 22 anos: um longo desafio social, político e ideológico

Neste ano, na Capital, os homicídios cometidos por jovens chegam a 75. Já os atos infracionais cresceram 38%.
Sem sonhos e sem esperança, jovens acabam entrando no mundo do crime Fotos: NATINHO Rodrigues

João ( nome fictício), aos 17 anos pela segunda vez, em menos de um ano vai cumprir a Liberdade Assistida. O menino confessa que não compareceu e nem assinou todos os relatórios na última medida e nada aconteceu com ele. Há 22 anos, as crianças e adolescentes brasileiras foram beneficiadas com um estatuto que garante saúde, educação, moradia e, ao mesmo tempo, as "pune" pelos atos infracionais cometidos. Pouco mais de duas décadas depois, a sociedade mudou aceleradamente, o perfil dos meninos e meninas também. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) permanece o mesmo. Não se pode negar os avanços que a lei trouxe ao seu público alvo, embora não se possa contestar o muito que ainda precisa evoluir.
A demanda e a gravidade das infrações aumentaram, ajudando a gerar superlotação nos centros educacionais, acúmulo de processos jurídicos e reincidência. Hoje, entretanto, uma das maiores polêmicas relativas ao ECA discutidas na sociedade está nos artigos definidores da assistência às crianças e aos adolescentes que cometem atos infracionais. As entidades de defesa dos direitos dos meninos continuam acreditando na imutabilidade do estatuto e na necessidade da sociedade se adequar a ele. Integrantes do Legislativo, do Executivo e do Judiciário querem modificações. A população cambaleia sem saber se deve proteger ou temer as crianças que a aborda nas ruas. Onde está o abismo entre a lei e a realidade? Como construir uma ponte ligando essas duas esferas? É o que pretendemos discutir na série de reportagem que se inicia hoje. Para tanto, fazemos um recorte do ECA abordando justamente a atenção às crianças e aos adolescentes que se encontram em constante conflito com a lei.

Necessidade
As diferenças são muitas entre os vários atores envolvidos no cumprimento do estatuto. Há um consenso importante, entretanto. O ECA é imprescindível. A discordância está na forma como ele é implementado, na suposta superproteção e, principalmente, na adequação das leis à realidade atual. Antes do ECA, os meninos eram detidos por perambularem nas ruas. Hoje, por roubo, sequestro, estupro e até mesmo os homicídios. A titular da Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), Yolanda Fonseca, defende uma diferenciação entre os casos. Para ela, as leis precisam ser mais rígidas para aqueles adolescentes que cometem infrações graves, como homicídio, sequestro ou estupro "Na minha opinião, para esses casos, a internação é a melhor medida", diz.
De acordo com ela, a demanda de atos infracionais cresceu consideravelmente nos últimos anos, e a reincidência é um dos principais motivos do aumento nas estatísticas. É neste momento que Yolanda enxerga a falha no ECA. "Os meninos reincidem antes de serem julgados, pois, independentemente do ato que cometem, se após 45 dias o processo não for concluído, eles são liberados", destaca.
Para se ter uma ideia, do cenário atual de violência entre os menores de 18 anos, somente neste ano, em Fortaleza, segundo a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) até a primeira quinzena do mês de junho, foram registrados e concluídos 75 homicídios. Os procedimentos instaurados já somam 1.673.
E a demanda é crescente. Em 2009, a delegacia registrou 2.436 procedimentos entre flagrantes e relatórios policiais, o que equivale a uma média de 6,6 atendimentos diários. Já no ano passado, este número aumentou para 3.384 e 9,27 atendimentos por dia. Os dados registram um crescimento de 38% nos atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes em apenas dois anos na Capital e de 39% na média de atendimentos diários.

Processos judiciais
O juiz titular da Quinta Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza, Manuel Clístenes de Façanha, partilha da mesma opinião da delegada Yolanda Fonseca e ressalta que o prazo de internação provisória de 45 dias é pequeno, pois, devido à grande demanda e à complexidade dos casos, é muito difícil concluir os processos antes desse período.
"Isso eu considero um ponto extremamente negativo e vulnerável do ECA. No estatuto atual, tanto faz você cometer um roubo ou um latrocínio, a internação provisória é a mesma para ambos", analisa.
Além dessa alteração, Manuel Clístenes diz que colocaria o tráfico de drogas e o porte de armas como uma possibilidade imediata de internação. "O ECA determina que só podem ser internados adolescentes que cometerem atos infracionais graves com violência. O tráfico de drogas é grave, porém, não tem violência real e, portanto, não comporta a internação", ressalta.
No entanto, o secretário da Secretaria de Direitos Humanos do Município (SDH), Dimitri Cruz não concorda com as propostas da delegada e do juiz, e afirma que eles fazem uma leitura baseada na realidade do trabalho. "Não temos que adequar o estatuto à realidade, mas a realidade à lei. Este é o processo ideal. A redução da violência poderia ser resolvida com uma política nacional especializada de proteção à criança e ao adolescente", acredita.

Justiça
38% é o aumento dos atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes em apenas dois anos na Capital. Nos atendimentos diários, o crescimento foi de 39%
45 dias é o tempo máximo que um adolescente pode ficar interno. Se o processo não for concluído neste período, ele deve ser liberado, independentemente da infração

OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Estatuto, um compromisso social e coletivo

Margarida Marques
Assessora comunitária do Cedeca
Uma primeira reflexão a fazer em relação a estes 22 anos de aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é quanto à sua apropriação e compreensão por parte da sociedade como um todo. Na maioria das vezes, o ECA só é visto como uma legislação que trata dos adolescentes que cometeram algum ato infracional. Na verdade, o estatuto é uma das poucas legislações no País que resulta de um amplo debate e contribuições de diversos segmentos, incluído as crianças e adolescentes.
Não se trata de uma lei somente para ser aplicada em casos de delitos. O ECA é uma legislação ampla, que diz respeito a todos os aspectos da vida das crianças e dos adolescentes e se refere, sem distinção de classe social, raça, reconhecendo a todos, e não somente é direcionada àqueles que comentaram algum delito.
Tratar o estatuto apenas do ponto de vista penal é um redução, um equívoco e uma demonstração de desinformação e descompromisso coletiva com a formação e proteção das novas gerações. Uma sociedade de adultos, que comete todos os tipos de crimes - corrupção, tráfico de drogas, falcatruas, homicídios - quer cobrar e impor aos adolescente aquilo que, na prática, não é feito pelos próprios adultos. Ou seja, tentando tapar o sol com a peneira, os "homens grandes" querem maior punição e encarceramento para crianças que, muitas vezes, são vítimas de uma sociedade doente, onde convivem de perto com a criminalidade.
Se durante estes 22 anos tivesse havido um forte investimento, por exemplo, na educação, uma parcela da população juvenil que já nasceu com a legislação não estaria, hoje, listando estatística de violência. Tenho visto um movimento nas redes sociais, no qual me incluo, em defesa e em proteção dos animais. No entanto, um movimento espontâneo, de corresponsabilidade com as novas gerações não tem o mesmo impacto. A infância e adolescência nunca são vistas como uma responsabilidade de cada um ou, mais concretamente, como posto no estatuto, da família, da sociedade e do Estado.
Toda criança e adolescente tem direito a viver com dignidade, ter moradia, saúde, educação, e é isso que o ECA prega, mas nem o Estado, nem o Município, nem o Governo Federal acompanham ou cumprem a lei. O que se precisa para viver com dignidade? De uma sociedade justa, que saiba cuidar de suas crianças.

´Punição´ sem internação ainda é falha
Não é novidade dizer que os Centros Educacionais que internam meninos e meninas em conflito com a lei estão superlotados. A impressão que se dá é que restringir a liberdade dos menores de 18 anos que saem da linha é a única solução para muitos juízes. Esta medida acaba sendo uma das únicas alternativas, já que dados comprovam o descumprimento das "punições", em meio aberto.

O titular da 5ª Vara da Infância e da Juventude, juiz Manuel Clístenes, recebe, mensalmente, novos 250 processos que envolvem crianças e adolescentes. Segundo ele, o número de homicídios tem crescido consideravelmente nos últimos anos.
Segundo a Quinta Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza, cerca de 5.800 processos estão tramitando atualmente. Novas 250 ações ingressam mensalmente. Destes, 1.800 "cumprem" a Liberdade Assistida (L.A.) e 90, a Prestação de Serviço a Comunidade (PSC).
Porém, dentro deste universo, existem diversos problemas. Segundo o juiz Manuel Clístenes, titular da Quinta Vara da Infância e Juventude, o descumprimento da Liberdade Assistida é o principal deles. Conforme o magistrado, cerca de 80% não cumprem a medida.
A falta de estrutura e uma equipe de 72 profissionais que ele considera reduzida para acompanhar 1.890 jovens são os principais motivos deste descumprimento.
João (nome fictício), aos 17 anos, pela segunda, vez cumpre Liberdade Assistida. Sentado em um banco de alvenaria da Quinta Vara, ao lado da mãe, ele aguardava para falar com uma psicóloga. "Na primeira vez, fui pegue em uma casa com uns amigos vendendo droga e portando uma arma. Passei 45 dias internado e depois fui solto. Ainda assinei uns papéis durante três meses, mas depois não fui mais".
Os papéis que João fala é um documento que os jovens que cumprem Liberdade Assistida durante seis messes precisam assinar. Além disso, eles devem ser acompanhados psicologicamente e socialmente.
Na semana passada, o menino reincidiu e foi pegue junto com um grupo que participava de um assalto. "Não tenho nenhum sonho, parei de estudar na 5ª série. Se pudesse escolher, seria pintor, mas não sei nada do futuro, não", ressalta.
Renê Dinelli, coordenador do Programa Municipal de Atendimento Sócio Educativo na Secretaria da Secretaria de Direitos Humanos do Município (SDH), afirma que, de fato, o descumprimento existe. No entanto, ele acredita que a grande demanda de meninos cumprindo a L.A. poderia diminuir se os problemas fossem solucionados na própria audiência.
"Percebemos que muitos juízes aplicam medidas que não deveriam estar no meio aberto. Um conflito escolar pode ser resolvido na própria escola. Dessa forma, a demanda, certamente, iria diminuir", conclui.

Ausência
80% dos jovens não cumprem a Liberdade Assistida e devido a isso acabam reincidindo. A falta de estrutura e recursos humanos é um dos motivos

KARLA CAMILA
REPÓRTER

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