quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Em texto para o site do Unicef de Moçambique, o escritor Mia Couto fala sobre a infância

Ensaio sobre a Convenção sobre os Direitos da Criança: Engravidar o mundo de futuro
Por Mia Couto – Escritor moçambicano, para o site do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)*

O melhor prémio que tive enquanto escritor foi-me dado por uma criança. Por um menino que teria uns 9 anos de idade. O pai tinha-o levado a uma sessão de lançamento do meu livro "O gato e o escuro".
A obra foi apresentada como sendo um "livro para crianças", apesar da minha resistência em aceitar que alguém escreve "para" crianças. O fato é que o menino ali estava, à entrada do grande salão, com um exemplar debaixo do braço. O pai pediu-me que assinasse o livrinho antes da sessão de lançamento porque o menino, o Manuel, tinha que se deitar cedo. Ajoelhei-me junto ao Manuel e fiz umas tantas perguntas idiotas que os adultos normalmente fazem quando acreditam que estão a falar com crianças. O menino olhou-me desinteressado e quase desapontado: eu era igual a todos os outros, os que, vezes sem conta, já lhe haviam feito as mesmas perguntas. Coloquei-lhe então uma outra questão:
- Este livro é sobre o medo do escuro. Será que tu tens medo?

Pela primeira vez ele me olhou nos olhos. Demorou a reagir e respondeu com uma pergunta:
- E tu tens medo do escuro?

Disse-lhe que sim. Ele gostou da sinceridade, deu meia volta e quando já se afastava conduzido pela mão do pai, ele parou e disse-me à distância:
- Não tenhas medo. O escuro apenas é feito das coisas que nele colocamos.

Disse aquilo para me reconfortar. Mas ele apenas recitava uma frase que eu tinha escrito no livro. O fato de um menino ter citado uma frase minha como se fosse algo da sua autoria foi talvez o maior dos prémios literários que tive. Nunca mais esquecerei esse momento.
Falo deste episódio para chegar a um outro ponto de partida: quase todos nós deixamos de saber falar com as crianças. Primeiro, pela raridade do momento: as poucas vezes que a elas nos dirigimos é para lhes falarmos. Não é para falarmos com elas. Essa ausência de diálogo tem uma aparente justificativa: as crianças, pensamos nós, pouco sabem e o que sabem, sabem mal. Não são ainda pessoas. São um projeto de pessoa. Olhamos para baixo quando falamos com elas. Como se elas fossem incompletas e estivessem à espera de legitimação para serem tratadas como sujeitos. Até esse reconhecimento de idade elas não são senão objeto da nossa atenção, mesmo que essa atenção seja positiva.
Em segundo lugar, não falamos com elas, porque o conteúdo da nossa "conversa" com as crianças resume-se a três ou quatro perguntas sempre iguais:

- Como te chamas?

- Quem é o teu pai? Ou a tua mãe?

- Em que escola andas?

- O que queres ser quando fores grande?

Esgotadas estas perguntas, resta um vazio. A razão deste vácuo não está na criança. A falta de habilidade para o diálogo mora em nós, adultos: deixámos de saber lidar com a infância que sobrevive dentro de nós. Mais grave ainda: temos medo de revisitar essa criança que subsiste no nosso íntimo.



*Confira a íntegra do texto de Mia Couto no site do Unicef Moçambique.

Nenhum comentário:

Postar um comentário