quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O Conselho Tutelar: Poderes e deveres face a Lei 8.069/90

Dentre as grandes e oportunas inovações estabelecidas pela Lei nº 8.069/90 para a sistemática de atendimento à criança e ao adolescente, está sem dúvida a previsão de criação, em todos os municípios brasileiros, de ao menos um Conselho Tutelar, que por definição legal é “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente…” (verbis/omissis – art.131). Como resposta ao Princípio Constitucional da Democracia Participativa, insculpido no art.1º, par. único, in fine, da Constituição Federal, quis o legislador que a própria sociedade não apenas delegasse poderes, mas sim participasse ativa e diretamente da solução dos problemas envolvendo suas crianças e adolescentes, na perspectiva de que a sistemática então vigente, na qual toda responsabilidade recaía na pessoa do “Juiz de Menores”, era flagrantemente inadequada e ineficiente, na medida que centralizava decisões e submetia questões de cunho eminentemente social à burocracia e morosidade da máquina judiciária. A partir da Lei nº 8.069/90, através do Conselho Tutelar, de mera espectadora passiva a sociedade passou a assumir um papel decisivo na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, sendo que para o exercício desse fundamental mister, o legislador conferiu àquele órgão verdadeira parcela da soberania estatal, traduzida em poderes e atribuições próprias, que erigem o conselheiro tutelar ao posto de autoridade pública, investida de função considerada pela lei como “serviço público relevante” (verbis – art.135 do citado Diploma Legal).
Importante mencionar que o conselheiro tutelar não pode ser considerado um simples ocupante de um “cargo público” qualquer[2], dada absoluta autonomia e independência funcional do Órgão Tutelar face a Administração Pública municipal, da qual não faz parte.
Embora merecessem uma qualificação própria, dada natureza sui generis de suas funções e da relação que mantém com a municipalidade, na classificação tradicional é possível enquadrar os conselheiros tutelares no conceito de agentes políticos, assim definidos por HELY LOPES MEIRELLES:
“AGENTES POLÍTICOS: São os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes atuam com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas pela Constituição e em leis especiais. Não são servidores públicos, nem se sujeitam ao regime jurídico único estabelecido pela Constituição de 1988. Têm normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhe são privativos.
“Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, (…), DECIDINDO E ATUANDO COM INDEPENDÊNCIA NOS ASSUNTOS DE SUA COMPETÊNCIA. SÃO AS AUTORIDADES PÚBLICAS SUPREMAS do Governo e da Administração NA ÁREA DE SUA ATUAÇÃO, pois NÃO ESTÃO HIERARQUIZADAS, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais e de jurisdição. Em doutrina, os agentes políticos TÊM PLENA LIBERDADE FUNCIONAL, EQUIPARÁVEL À INDEPENDÊNCIA DOS JUÍZES NOS SEUS JULGAMENTOS (…).
“Realmente, a situação dos que governam e decidem é bem diversa das dos que simplesmente administram (…). Daí porque os agentes políticos precisam de ampla liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções (…)” (In Direito Administrativo Brasileiro. 22ª Edição. Malheiros Editores, São Paulo, 1997, págs.72/73 – grifamos).
Como decorrência dessa peculiar condição, não é correto incluir o Conselho Tutelar na estrutura organizacional da Administração Pública municipal, havendo entre o órgão e a municipalidade mera vinculação administrativa, na medida em que o município está obrigado a destinar recursos orçamentários em patamar suficiente para garantir o seu adequado funcionamento, tal qual faz em relação à Câmara Municipal[3], sem que isto também importe em quebra de sua autonomia e/ou independência.
De igual sorte, os conselheiros tutelares não devem ser considerados ocupantes de “cargo em comissão” (como ocorre em muitas leis municipais) e muito menos subordinados ao Chefe do Executivo local[4], a exemplo dos funcionário públicos municipais, com os quais como visto não se equiparam, sendo seu “regime jurídico” face a municipalidade também diferenciado.
Na verdade, o conselheiro tutelar, na condição de agente político investido de mandato popular, possui poderes e atribuições equiparados aos do Juiz da Infância e Juventude, cujas funções substitui (nesse sentido, vide art.262 da Lei nº 8.069/90), sendo que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente coloca ambas autoridades públicas em absoluta igualdade de condições no momento em que considera crime, previsto em seu art.236, impedir ou embargar tanto a ação do Juiz da Infância e Juventude quanto do membro do Conselho Tutelar, também cometendo a mesma infração administrativa de seu art.249 aquele que descumpre, dolosa ou culposamente tanto a determinação da autoridade judiciária quanto a emanada do Órgão Tutelar[5].
Nesse contexto, sem jamais perder de vista que o Conselho Tutelar é um órgão colegiado, e que as atribuições relacionadas nos arts.95, 136, 191 e 194 da Lei nº 8.069/90 somente poderão ser validamente exercidas se resultarem de uma deliberação desse colegiado, ainda que a decisão respectiva tenha sido tomada por maioria de votos, a prática tem demonstrado que, muitas vezes, seja por desconhecimento seja por temor de represálias por parte do Poder Público local, o Conselho Tutelar acaba deixando de usar de seus poderes e prerrogativas na defesa de crianças e adolescentes, que assim acabam sendo prejudicadas pela omissão ou ineficácia da intervenção desse órgão que deveria protegê-las.
Com efeito, quando a lei confere poderes a determinado órgão ou autoridade para agir, está também impondo a este(a) o dever de fazê-lo, sendo certo que constitui crime de prevaricação “RETARDAR OU DEIXAR DE PRATICAR,indevidamente, ATO DE OFÍCIO, ou praticá-lo contra disposição expressa em lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (verbis – art.319 do Código Penal – grifei).
Em outras, palavras, quem tem o poder, também tem o dever, devendo a autoridade pública se empenhar e buscar meios para cumprir seus misteres, usando para tanto de todos os mecanismos e recursos legais que estiverem à sua disposição.
Nesse particular, nota-se que os Conselhos Tutelares vêm encontrando uma certa dificuldade em fazer valer seu poder de requisição, previsto no art.136, inciso III, alínea “a” da Lei nº 8.069/90.
Segundo o citado dispositivo, dada sua condição de autoridade pública investida de poder de decisão[6], o Conselho Tutelar não necessita de ordem judicial para fazer com que estas sejam cumpridas, notadamente quando dirigidas a outras autoridades ou órgãos públicos, bem como a pais ou responsável por criança e/ou adolescente.
As decisões do Conselho Tutelar[7], em tais casos, já são naturalmente dotadas de coercibilidade, obrigando seu destinatário a cumprí-la fielmente, independentemente de formalidade outra além da requisição ou notificação propriamente dita.
Em se tratando de uma requisição, expedida com base no citado art.136, inciso III, alínea “a” da Lei nº 8.069/90, uma vez cumpridas as formalidades procedimentais necessárias à tomada e materialização dessa decisão e sendo a ordem respectiva[8] corretamente endereçada à autoridade pública competente para atender o comando ali existente (para o que deve ser concedido prazo razoável), seu descumprimento injustificado importa, em tese, na prática de crime de desobediência, definido pelo art.330 do Código Penal, sem embargo da prática de infração administrativa definida no art.249 da Lei nº 8.069/90, podendo assim o refratário sofrer dupla sanção[9].
Sendo o Conselho Tutelar AUTORIDADE PÚBLICA investida de PODER DE MANDO, é mais do que elementar que o descumprimento injustificado de uma ordem legal dele regularmente emanada, caracteriza a infração penal acima referida, sendo também passível de sanção na esfera administrativa, tudo com o objetivo de fazer valer as prerrogativas – e deveres correspondentes conferidas ao órgão pela sociedade que representa.
Caso não concorde com a decisão do Conselho Tutelar ou entenda tenha sido ela proferida em desacordo com as prescrições legais ou regimentais existentes, ao destinatário da requisição (diga-se ordem) do Conselho Tutelar restará o pedido revisional à autoridade judiciária, tal qual previsto no art.137 da Lei nº 8.069/90, somente ficando desobrigado de cumpri-la caso provido seu pleito.
Ainda assim, o Conselho Tutelar pode não se dar por vencido, sendo-lhe facultado questionar junto à Superior Instância a decisão da autoridade judiciária, contra ela apelando ou mesmo impetrando mandado de segurança, em sendo constatado que dela resultou violação de direito líquido e certo (ou prerrogativa legal) do órgão[10].
Inadmissível, pois, o descumprimento puro e simples das requisições e demais determinações do Conselho Tutelar, o que demonstra pouco caso para com os poderes dos quais o órgão está investido, com o que este não pode se conformar.
Assim sendo, uma vez deliberado pela expedição de requisição a autoridade pública municipal na forma do disposto no art.136, inciso III, alínea “a” da Lei nº 8.069/90 (no sentido da realização de um acompanhamento de determinado caso pelo serviço de assistência social da prefeitura ou de uma orientação psicológica sistemática a uma criança, adolescente ou família), bem como vencido o prazo concedido para o cumprimento da ordem legal emanada, sem que para tanto tenha sido apresentada justificativa plausível, deve o Conselho Tutelar:
Oferecer, diretamente[11], representação ao Juiz da Infância e Juventude da Comarca para fins de instauração de procedimento para apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente, a teor do disposto no 136, inciso III, alínea “b” em combinação com o art.194 e seguintes da Lei nº 8.069/90;
Extrair e encaminhar cópias da mesma documentação utilizada para instruir a inicial do procedimento (referente ao caso atendido onde a medida foi aplicada, cópia da ata da sessão deliberativa onde se decidiu pela expedição da requisição, cópia da requisição em si e seu protocolo e, se houver, resposta da autoridade negando o cumprimento da ordem respectiva por motivos injustificados), ao representante do Ministério Público com atribuições junto à Vara Criminal da comarca, a título de delatio criminis;
Extrair e encaminhar cópias da mesma documentação acima referida ao representante do Ministério Público com atribuições junto à Vara da Infância e Juventude da Comarca, para que o órgão do Parquet, a seu critério de conveniência e oportunidade, ingresse com ação civil pública ou mandamental na defesa de interesse (ainda que individual) de crianças ou adolescentes que tenham sido de qualquer modo violados em decorrência do descumprimento da requisição do Órgão Tutelar.
Restaria ainda, a meu ver, a possibilidade de, a depender da situação, o próprio Conselho Tutelar impetrar mandado de segurança para ver assegurado seu direito líquido e certo de “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente…” (verbis/omissis), definido no já citado art.131 da Lei nº 8.069/90.
Vale repetir que dada completa autonomia funcional do Conselho Tutelar, todas essas iniciativas devem ser tomadas independentemente da “autorização” autoridade pública outra qualquer, devendo o órgão ter a isenção e coragem de, se necessário, contrariar mesmo os interesses do Chefe do Executivo Municipal, ao qual não está subordinado e, por mandamento constitucional, tem também e acima de tudo o dever de tratar os assuntos referentes à criança e ao adolescente com a mais ABSOLUTA PRIORIDADE, o que importa, dentre outras, em assegurar que a área da infância e juventude tenha “preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas” e receba uma “destinação privilegiada de recursos públicos”, tal qual determinam o art.227, caput da Constituição Federal e art.4º, par. único, alíneas “c” e “d” da Lei nº 8.069/90.
Destarte, por mais obstáculos que se lhe imponham, o Conselho Tutelarprecisa a todo custo fazer valer sua autoridade, para que a instituição não venha a cair no descrédito por parte dos governante e da população e, em especial, para que não se veja impossibilitada de cumprir o papel fundamental na defesa dos direitos de crianças e adolescentes que lhe foi reservado pela Lei nº 8.069/90.

[1] Promotor de Justiça integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente

[2] apesar da equiparação do conselheiro tutelar ao conceito de “funcionário público” em especial para fins criminais (vide art.327, caput do Código Penal).

[3] com a ressalva, aliás, que a municipalidade deve garantir em primeiro lugar o repasse de verbas ao Conselho Tutelar, dada inevitável incidência do princípio constitucional da prioridade absoluta, que traduzido pela Lei nº 8.069/90 importa, dentre outras, na destinação privilegiada de recursos públicos para a área infanto-juvenil.

[4] ou a qualquer outra autoridade pública de qualquer nível ou Poder constituído.

[5] assim entendida aquela decorrente de deliberação do colegiado, ainda que tomada por maioria de votos.

[6] embora tais decisões não possuam caráter jurisdicional, ex vi do disposto no citado art. 131, terceira parte, da Lei nº 8.069/90.

[7] repita-se, desde que resultantes de deliberação do colegiado, nos moldes do previsto na legislação municipal específica e/ou regimento interno do órgão.

[8] pois quem requisita não pede, manda.

[9] sendo uma pelo Juízo criminal comum e outra pelo Juízo da Infância e Juventude, sem que isto importe em bis in idem, dada natureza jurídica diversa das penas criminal e administrativa.

[10] embora o Conselho Tutelar a rigor não tenha personalidade jurídica, não restam dúvidas que o órgão possui personalidade judiciária, ou seja, capacidade de ser parte, para defesa em Juízo de seus interesses. Deverá, no entanto, em tal hipótese constituir advogado para patrocinar-lhe a defesa.

[11] e aí sem a necessidade de intervenção de advogado.

Fonte: Autoria de MURILLO JOSÉ DIGIÁCOMO Promotor de Justiça retirado do site www.mp.go.gov.br

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