Se a idoneidade moral do membro do Conselho Tutelar já é exigida pelo art. 131, inciso I do ECA como requisito para sua candidatura, não se pode admitir que a postura ética do Conselheiro se restrinja ao momento de sua escolha. A Lei Municipal deve prever sempre que a conduta indecorosa do Conselheiro Tutelar é motivo para a perda da função pública1 que exerce.
Como caracterizar a falta de decoro?
Porém, a descrição da falta de decoro deve ter parâmetros mínimos de caracterização, para que se previna o uso do controle da idoneidade moral do membro do Conselho como forma de perseguição política, tornando-se a figura da falta de decoro uma abstração demasiadamente extensa e indefinível, podendo atingir a própria autonomia do órgão, amedrontando os agentes políticos2 que o compõem pela insegurança em saber como se conduzir. Os limites de uma atuação baseada no decoro da função estão, em regra, definidos na primeira parte deste trabalho, mas, exemplificativamente, é importante que compreendam a observância ao horário de funcionamento do órgão com a efetiva disponibilidade do Conselheiro para as atividades do Conselho; a submissão dos casos sob sua atenção ao exame do colegiado3; a conduta respeitosa para com as pessoas que procuram seus serviços, principalmente as crianças e adolescentes; o não envolvimento com o uso de substâncias entorpecentes ilícitas e moderação nas lícitas, como remédios controlados e bebidas alcoólicas, dentre outras.
Como apurar a falta de decoro do Conselheiro Tutelar?
Como registrado acima, é extremamente importante que haja a previsão na Lei Municipal de que a falta de idoneidade é causa de perda da função pública de Conselheiro Tutelar, já que, pelo sistema jurídico brasileiro, vigora o princípio da legalidade (Constituição Federal, art. 5º, II – ” ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei”), inexistindo a possibilidade de punição sem precedente previsão legal (Constituição Federal, art. 5º, XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal)4.
Caracterizado desse modo que a visão do problema da idoneidade moral do Conselheiro Tutelar tem uma dimensão jurídica, além de ética, é que se impõe observar que a apuração da falta de decoro deve se dar formalmente, com homenagem aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV – “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).
A formalização do procedimento de apuração da falta de decoro do Conselheiro é meio pelo qual se garante a instrumentalização das antecitadas garantias constitucionais, posto que, é com a identificação objetiva da ação tida como inidônea moralmente, que se possibilita ao membro do Conselho Tutelar em suspeição de ação ou omissão eticamente indevida a possibilidade de preparar sua defesa, contrapondo as provas e argumentos contra si indicados, o que é a própria natureza do contraditório, isto é, do dizer em contrário, numa perspectiva dialética do processo.
Há, ainda, a necessidade de se estabelecer a forma como o procedimento se desenvolve, para que o Conselheiro Tutelar com conduta em exame possa atingir a plenitude de sua defesa, aproveitando-se de todas as fases para a produção ou contestação das provas a serem eventualmente deduzidas. A descrição de como se desenvolve esse procedimento, no âmbito administrativo, não precisa necessariamente ser prevista na Lei Municipal, se essa norma local implícita ou explicitamente dispuser que a prévia regulamentação pode ser feita pelo órgão municipal perante o qual ocorrerá esta apuração.
E quem desenvolve o procedimento para apuração da falta de decoro do Conselheiro Tutelar?
É de se lembrar, de pronto, que o Conselho Tutelar é órgão autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelos interesses infanto-juvenis (ECA, art. 131), não sendo, portanto, subordinado hierarquicamente a outro órgão da estrutura municipal, condição indispensável à manutenção de sua autonomia vinculada à lei5.
Uma indicação de solução será verificar se na Lei de criação do Conselho Tutelar, admitiu-se que cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente a declaração de vacância da função de Conselheiro Tutelar, para fins de substituição pelo suplente respectivo.
Nessa hipótese, lógico admitir-se o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente como instância ou lócus privilegiado para a condução do procedimento administrativo de apuração da falta de decoro de Conselheiro Tutelar, posto que, se pode mais (declarar vaga a função), pode menos (apurar a existência da inidoneidade moral do Conselheiro Tutelar que o levaria à perda da função), entendimento basilar do Direito.
Além disso, se a Lei local atribuiu ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente a declaração de vacância da função pública de Conselheiro Tutelar, deve dotar o órgão competente para tal declaração de meios efetivos à execução deste dever.
Em reforço, diga-se, ainda, que como órgão paritário, composto por representação da sociedade civil e do poder público, atende o Conselho Municipal dos Direito da Criança e do Adolescente à necessidade de se obedecer, na perda da função, o mesmo critério de legitimação imposto para a escolha de Conselheiro Tutelar, qual seja, o da participação da população (ECA, art. 131, em sentido contrário).
Contudo, essa solução de atribuir ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente a competência para o procedimento de apuração de falta de decoro de Conselheiro Tutelar não é conclusão pacífica.
Experiências várias estão em plena atividade em todo País, o que é absolutamente normal, pois mesmo depois de uma década de regulamentação da Constituição Federal pelo ECA, ainda se constrói uma cultura sobre o papel e a natureza dos Conselhos da área da infância. Um exemplo de solução outra é a de Porto Alegre(RS), em que se instituiu uma Corregedoria dos Conselhos Tutelares, composta por representações de diversos segmentos, com sentido de controle disciplinar e de orientação aos vários Conselhos Tutelares da capital gaúcha.
A reflexão que se faz sobre o modelo gaúcho se refere ao questionamento sobre a eventual superposição das ações entre a Corregedoria e o CMDCA, já que, como antes mencionado, qual seria a legitimação da Corregedoria senão a de ter composição representativa dos segmentos sociais, o que, por Lei Federal, já se tem ordinariamente e sem necessidade de nova regulamentação legislativa, através dos Conselhos Municipais de Direito da Criança e do Adolescente?
Outra possibilidade seria a de um controle interno do decoro do Conselheiro Tutelar pelo próprio órgão.
A hipótese guarda respeito ao princípio da autonomia do Conselho Tutelar e deve ser regulamentado por seu Regimento Interno, mas não prejudica, em princípio, o controle externo feito pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o qual também deve ser regulamentado em Regimento.
A existência das duas formas de controle afigura-se como um sistema próximo ao ideal no equilíbrio entre a autonomia do Conselho Tutelar e a ação do CMDCA, responsável pela deliberação, planejamento e controle das políticas públicas voltadas aos interesses infanto-juvenis, condição que não foge da caracterização do serviço público prestado pelo Conselho Tutelar.
De qualquer modo, repita-se: a falta de procedimento formal de apuração administrativa da inidoneidade moral do Conselheiro Tutelar, com anterior previsão do rito e das causas de caracterização da atitude indecorosa, importa em nulidade da decisão de perda da função, principalmente se não forem observados ao Conselheiro investigado os direitos de defesa e de contradizer as provas e alegações apresentadas, podendo o mesmo recorrer à Justiça para obter a anulação de todos os atos de sua destituição.
Há controle judicial do decoro do Conselheiro Tutelar?
A Constituição Federal estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Art. 5.º XXXV), o que inclui o exame da falta de decoro do Conselheiro Tutelar como obstáculo à oferta regular dos serviços do órgão.
Somente como exemplo, tome-se o caso de um Conselheiro Tutelar que não comparece às reuniões do órgão ou não é assíduo ao horário de atendimento. Nessa hipótese, induvidosamente há prejuízo para as atividades do colegiado e, se não houver a previsão do procedimento administrativo de apuração da falta de decoro, ou se omitir o órgão encarregado desta apuração, cabível e legítima a atuação da Justiça no controle da idoneidade moral do membro do Conselho Tutelar.
A bem da verdade, o procedimento administrativo não prejudica a instauração de ação judicial com o mesmo objetivo de apurar a falta de decoro, pois, como antes assinalado, ao Judiciário cabe o exame de qualquer forma de lesão ou ameaça ao direito, como o da população prejudicada pela oferta irregular dos serviços do Conselho Tutelar.
E cabe ao Ministério Público e aos demais co-legitimados a ação civil pública voltada à exclusão de Conselheiro Tutelar de inidônea conduta funcional, na forma do art. 208, parágrafo único c/c o art. 210 do Estatuto.
Não é de se esquecer que a conduta imoral do Conselheiro Tutelar pode ser considerada como ato de improbidade administrativa, prevista pelo art. 11 da Lei 8.429/92, pois é o Conselheiro Tutelar um agente público de órgão que recebe investimento da Fazenda Municipal, através das dotações orçamentárias determinadas pelo parágrafo único do art. 134 do ECA6.
1O membro do Conselho Tutelar exerce uma função pública, que é o desempenho das atribuições típicas da atividade do órgão público a que pertence, sem ocupar, entretanto, cargo público.
2A consideração dos membros do Conselho Tutelar como agentes políticos é derivada de sua condição de titulares de cargos estruturais à organização política do País, pois são eles os responsáveis pela concreção do princípio constitucional da proteção integral a crianças e adolescentes em situações de risco, com processo de escolha e investidura determinados por normas especiais, diversas daqueles concernentes ao servidores públicos em geral.
3Embora em situações de emergência seja admissível que o Conselheiro Tutelar aja individualmente, ad referendum do grupo, essas ações devem ser depois submetidas à ratificação ou retificação do conjunto dos Conselheiros Tutelares competentes na forma dos arts. 138 c/c 147 do Estatuto, pois a validade de sua intervenção como órgão de garantia dos direito e interesses infanto-juvenis esta na deliberação; – decisão conjunta – ; de seus membros, como se vê da interpretação do art. 131 da mesma Lei e do art. 227, § 7º e 204, I da Constituição Federal.
4Embora a Constituição se refira a crime, há extensão da necessidade de lei anterior cominatória de sanção para os caso envolvendo o exame dos atos administrativos, pois, para a Administração Pública, em que estão inseridos os Conselhos Tutelares, vigora expressamente o princípio da legalidade (Constituição Federal, art. 37, modificado pela Emenda Constitucional n.º 19/98 – “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” – grifou-se)
5A vinculação administrativa do Conselho Tutelar a um órgão municipal, como o gabinete do Prefeito ou uma Secretaria ou Fundação é meramente para efeitos de execução orçamentária, já que, como cabe ao Município prever recursos financeiros para o funcionamento do Conselho, a execução orçamentária das verbas estabelecidas nas dotações específicas, como custeio e despesas de remuneração dos membros (que não podem ser extraídas do Fundo Municipal da Infância e da Juventude), têm que ter sua alocação, gerenciamento e prestação de contas, por estrutura da organização municipal com características de órgão típico da Administração. Entretanto, não cabe ao Gabinete do Prefeito, à Secretária ou outro órgão a que esteja vinculada administrativamente o Conselho Tutelar o controle de suas ações, sob pena de se ter indevida intervenção na autonomia do órgão, garantia dos interesses da população infanto-juvenil, mais do que dos próprios membros do Conselho.
6Lei 8.429/92: Art. 1º. Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta Lei.
Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de 50% (cinquenta por cento) do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.
Art. 2º. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior. – grifou-se
Fonte: Autor: Márcio Thadeu Silva Marques é Promotor de Justiça; Secretário da ABMP – Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude; Membro do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (MP/MA); Associado do CDMP, do CDVDH e do Núcleo Educação para a Justiça – Associação de Magistrados e Promotores de Justiça. Uma visão jurídica da Ética do Conselho Tutelar. Disponível em: www.mp.sp.gov.br
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